十牛圖
Dez Touros
No séc XII surge um conjunto de quadros, acompanhados por poemas, que ilustram o caminho para a iluminação, segundo a tradição budista. Inicialmente terá existido na China (Ch’an) com um número diferente de ilustrações, mas aquando da adopção no Japão (Zen), tomou a forma de 10 quadros.
Este conjunto de imagens é conhecido tradicionalmente por “Dez Imagens do Pastoreio de Bois” ou mais simplesmente por “Dez Touros”.
A versão mais famosa tem a autoria do mestre budista chinês Kuoan Shiyuan, que viveu durante a Dinastia Song (960 a 1279). As imagens que partilho aqui contigo são da autoria do mestre japonês Tenshō Shūbun (1414-1463) do templo Shōkokuji em Kyoto.
Os poemas foram traduzidos e comentados inúmeras vezes, pois a antiga língua chinesa permite-se a várias interpretações.
Da mesma forma que existem várias ilustrações, vários autores e vários desconhecidos. Mas, e apesar de aparentemente ser uma estória complexa, a minha intenção é partilhar contigo as ilustrações de Tenshō Shūbun, e os poemas de Kuoan Shiyuan (traduzidos por John Balcom para inglês no livro – “After Many Autumns: A Collection of Chinese Buddhist Literature“, editado por John Gill, Susan Tidwell, Buddha’s Light Publishing, 2011).
Noutra tradução por D. T. Suzuki (“Manual of Zen Buddhism“, Kyoto: Eastern Buddhist Society, 1934. London: Rider & Company, 1950, New York: Grove Press, 1960. pp. 150-171), encontrei apontamentos para cada uma das ilustrações. Como me ajudaram a entender um pouco mais da mensagem que o poema nos transmite, decide também incluir abaixo.
I. Em Busca do boi
Afastando apressadamente o pincel procurando por ele
Água larga, montanhas distantes, estrada longa;
Cansado e exausto, ainda me escapa.
O chilrear das cigarras noturnas nos áceres é tudo o que se ouve.
(Nota: A besta nunca se perdeu, mas de que adianta procurá-la? A razão pela qual o pastor não tem intimidade com a besta é porque o próprio pastor violou a sua própria natureza mais íntima. A besta está perdida, pois o próprio pastor foi desviado do caminho por meio dos seus sentidos ilusórios. A sua casa está se afastando dele, e atalhos e encruzilhadas são sempre confusos. O desejo de ganhar e o medo de perder queimam como fogo; ideias de certo e errado disparam como uma falange)
II. O Rasto do Boi
Seus rastros podem ser vistos sob as árvores ao longo do rio,
Partindo o pincel, você vê isso?
Mesmo em um lugar tão remoto nas montanhas,
Como pode o vasto céu esconder seu nariz?
(Nota: Com a ajuda dos sutras e estudando as doutrinas, ele compreendeu algo, encontrou os vestígios. Ele agora sabe que os vasos, por mais variados que sejam, são todos de ouro e que o mundo objetivo é um reflexo do Ser. No entanto, ele é incapaz de distinguir o que é bom do que não é, a sua mente ainda está confusa quanto à verdade e mentira. Como ainda não entrou no portão, diz-se provisoriamente que notou os vestígios)
III. Avistar o Boi
Um rouxinol chama de um galho verde —
Sol quente, brisa suave, rio margeado por salgueiros;
Nenhum lugar deixado para se esconder
Sua cabeça e chifres ali, reais para a vida.
(Nota: O homem encontra o caminho pelo som que ouve; ele vê assim a origem das coisas, e todos os seus sentidos estão em harmonia. Em todas as suas atividades, está manifestamente presente. É como o sal na água e a cola na cor. [Está lá, embora não seja distinguível como uma entidade individual.] Quando o olho é direcionado adequadamente, ele descobrirá que não é outro senão ele mesmo)
IV. Capturar o Boi
Com todo o meu esforço, agarro-o;
Forte e teimoso, é difícil de controlar.
Um minuto está no planalto,
O próximo num lugar profundo entre as nuvens.
(Nota: Há muito tempo perdido no deserto, o homem finalmente encontrou o boi e suas mãos estão sobre ele. Mas, devido à pressão avassaladora do mundo exterior, é difícil manter o boi sob controle. Ele constantemente anseia pelo velho campo perfumado. A natureza selvagem ainda é indisciplinada e recusa-se totalmente a ser quebrada. Se o pastor deseja ver o boi completamente em harmonia consigo mesmo, certamente deve usar o chicote livremente)
V. Pastorear o Boi
Nunca fique sem chicote e corda
Ou pode se perder no mundo.
Pastoreado adequadamente, ele se tornará manso,
Sem amarras seguirá não forçado.
(Nota: Quando um pensamento se move, outro segue, e depois outro – uma linha interminável de pensamentos é assim despertada. Através da iluminação, tudo isso se transforma em verdade; mas a mentira afirma-se quando a confusão prevalece. As coisas nos oprimem não por causa de um mundo objetivo, mas por causa de uma mente que se engana. Não solte o fio do nariz, segure-o com firmeza e não permita vacilações)
VI. Montando o Boi Até Casa
Montado no boi, serpenteando para casa;
Vendo as nuvens da noite, tocando uma flauta,
Batendo palmas e cantando tão alegremente—
Sabendo bem, por que falar disso?
(Nota: A luta acabou; o homem não está mais preocupado com ganhos e perdas. Ele cantarola uma melodia rústica do lenhador, canta canções simples do menino da aldeia. Selando-se nas costas do boi, seus olhos estão fixos nas coisas que não são da terra, terrenas. Mesmo que seja chamado, não virará a cabeça; por mais seduzido que seja, ele não será mais retido)
VII. Boi Esquecido, o Homem Permanece
Tendo voltado para casa no boi
Tanto o homem quanto o boi são livres.
Embora o sol esteja alto, ainda assim o homem parece sonhar;
O chicote e a corda não são usados em sua cabana de palha.
(Nota: Os dharmas são um e o boi é simbólico. Quando você sabe que o que precisa não é do laço ou da rede, mas da lebre ou do peixe, é como o ouro separado da escória, é como a lua saindo das nuvens. O único raio de luz sereno e penetrante brilha mesmo antes dos dias da criação)
VIII. Homem e Boi Ambos Esquecidos
Chicote e amarra, homem e boi, todos vazios;
O vasto céu azul difícil de entender.
Como pode um floco de neve sobreviver dentro de um fogão aceso?
Agora me junto aos iluminados do passado.
(Nota: Toda confusão é posta de lado e somente a serenidade prevalece; nem mesmo a ideia de santidade é obtida. Ele não se demora onde o Buda está, e para onde não há Buda ele passa rapidamente. Quando não existe nenhuma forma de dualismo, mesmo um de mil olhos falha em detectar uma brecha. Uma santidade diante da qual os pássaros oferecem flores não passa de uma farsa)
IX. Voltar à Fonte e à Origem
É uma luta para voltar à fonte e à origem,
Nada supera isso. Sem visão ou som,
Incapaz de ver a árvore da floresta;
A água vasta, as flores vermelhas porque assim é.
(Nota: Desde o início, puro e imaculado, o homem nunca foi afetado pela impureza. Ele observa o crescimento das coisas, enquanto ele próprio permanece na serenidade imóvel da não-afirmação. Ele não se identifica com as transformações semelhantes a maya [que estão acontecendo ao seu redor], nem faz uso de si mesmo [o que é artificialidade]. As águas são azuis, as montanhas são verdes; sentado sozinho, ele observa as coisas passando por mudanças)
X. Entrar no Mundo, Mãos Livres
Desnudo e descalço entra no mundo
Coberto de poeira e cinzas, sorrindo amplamente;
Não há necessidade de feitiços mágicos
Para fazer florescer o ramo estéril.
(Nota: O portão da sua cabana de palha está fechado e nem mesmo os mais sábios o conhecem. Nenhum vislumbre da sua vida interior deve ser captado; pois ele segue seu próprio caminho sem seguir os passos dos antigos sábios. Carregando uma cabaça [símbolo do vazio] ele sai para o mercado, apoiado em um cajado [sem quaisquer posses] ele volta para casa. Ele é encontrado na companhia de bebedores de vinho e talhantes, ele e todos eles são convertidos em Budas)
Apesar do caminho para a iluminação estar aqui descrito de uma forma linear, em 10 passos sequenciais, na realidade o caminho é feito em forma espiral, sempre em constante evolução, descoberta e aprendizagem. O caminho para a iluminação é o controlo da mente, que aqui é representado pelo boi – como é tradição desde o tempo de Buda – devido à sua natureza indisciplinada.
Podemos retirar qualquer peso religioso deste post e ficar por uma perspectiva laica e secular. Vou partilhar contigo o entendimento que tenho e partilhar também da minha experiência.
A nossa mente é indisciplinada porque facilmente é corrompida pelas nossas crenças e influências externas. Isso alimenta os desejos, os medos, as ilusões, as expectativas e o ego. Desde os tempos da clássica Grécia que vários filósofos “filosofaram” sobre a origem da dor. E usando nomenclaturas diferentes, acabam por referir algo muito próximo ao que está aqui exposto.
Quando estamos cansados do estado em que vivemos, seja por excesso de stress, excesso de ansiedade, falta de propósito, falta de valores, ou outro motivo qualquer, encetamos na procura de algo. Esse é o ponto I.
O ponto II é a tomada de autoconsciência, aqui representado pelos vestígios de pegadas do boi. Ou seja, termos consciência da nossa realidade e da nossa condição. Consciência das influências, consciência do caos da mente, consciência das origens do stress, consciência das origens da ansiedade. É verdade que ainda não sabemos bem o que fazer com isso, mas começamos a ter consciência de que algo mais se pode ou deve fazer.
O ponto III vem com a prática da atenção plena, do viver o agora, de viver no presente. Diz-se que a dor surge por vivermos o passado. Seja um passado prazeroso ou não, irá originar dor. Sabe-se também que a ansiedade é por vivermos “demasiado” futuro. A dor surge do medo do insucesso, o medo da expectativa sair gorada. Quando começamos a experienciar o agora, o presente, tomamos consciência do que se passa na nossa mente.
O ponto IV é o alerta de que é preciso disciplina para se conseguir domar a mente. Torna-se sempre mais fácil regressar ao nosso lugar-seguro, ao que já conhecemos – mesmo que isso seja uma condição da qual queremos nos afastar. O medo do desconhecido aliado às influências dos “velhos do Restelo” só são vencidos com o “chicote da disciplina”.
O ponto V vem com o hábito e com a prática continua da atenção plena “mindfulness“, meditação, qigong, taijiquan ou outra prática que nos permita estar presente, concentrado na respiração, focado nos movimentos ou nos sons que nos rodeiam. É também importante notar que é uma fase perigosa. Perigosa no sentido em que iremos sentir uma autoconfiança no domínio da mente e poderemos facilitar. Mas essa confiança ainda é uma falsa-confiança.
O ponto VI já nos coloca a experienciar os benefícios destas práticas meditativas. Já nos encontramos com menos stress, menos ansiedade, a dormir mais profundamente, em fim, mais alegres. Dá vontade de partilhar com o Mundo de que descobrimos a cura para esses males.
No meu entender, o ponto VII surge quando percebemos que existem múltiplas ferramentas mas o que realmente interessa é o resultado final. Não vale a pena os fundamentalismos de que prática X é superior à Y, ou mesmo de deveremos promover determinada prática como A solução que descobrimos.
Tanto o ponto VIII como o IX me parecem similares a conceitos que já encontrei na temática do Taoismo. A união com a Natureza, o fluir ao sabor do que está a acontecer, sem forçar, sem resistir (o conceito de Wu-Wei). Nesse estado aparentemente não existe confusão, pois não há qualquer resistência. A aceitação completa do agora, independentemente das classificações de prazer de outrora. Parece-me também que no ponto IX já houve a dissociação completa do Ego. Nós somos por sermos, e não por estarmos ou termos uma qualquer condição. É o regresso à origem, quando nascemos somos só aquele Ser, não somos o profissional de X, ou o estudante de Y, ou o Diretor de Z. Somos o Ser, ponto.
O meu entendimento para o ponto X já me leva para ver alguém que já caminha o seu próprio trilho. É certo que começou “sobre os ombros de gigantes”, mas agora dá os seus próprios passos, sem receio de errar, sem desejos de vencer. Não é nenhuma santidade ou de estatuto superior, é um simples Ser que se encontra tanto com o doutor como com o talhante. O seu propósito é só um, que todos os seres sencientes deixem de experienciar a Dor.
Infelizmente ainda não experienciei os pontos VIII, IX e X. Tentei partilhar o que eu penso que sejam, mas espero um dia poder editar este post com a minha experiência.